segunda-feira, 5 de abril de 2010

um vício sagrado

Mais um furto havia sido completado com êxito. O que furtava era de extrema importância para ela. Era só no mundo, não roubava para sustentar seus filhos, pois não os tinha. Recriminava qualquer tipo de violência. Em seus atos era cordial e delicada. Pedia com certa educação mas não era boba. Não tinha medo de ser reconhecida e então agia sem nenhuma forma de proteção à sua identidade. Suas ações eram em localidades diferentes da cidade, por algumas noites estava no santa cândida, outras no pinheirinho, diversificava o local, a hora e assim nunca foi pega. Quem era furtada ficava tentando entender a maneira da abordagem e o porquê do objeto do furto. Chegava conversando e não as assustava. Logo após o roubo entregava um par de sacolas. Ela se importava com suas vítimas. Assumia uma personalidade que não era sua, nos roubos era comunicativa, brincalhona e divertida, mas em seu trabalho como digitadora era fechada, poucas vezes almoçou com os colegas de trabalho, e quando cumpria seu horário de trabalho se transformava na adorável assaltante de sapatos.

Ela usava sapatos, não andava descalça, roubava sapatos. Mas não era cleptomaníaca, roubava sapatos usados. Sapatos dos pés das mulheres. Quando a conheci mais e quando conheci sua casa, pude entender a complexidade daquela simples mulher que tinha um hábito nada comum.

O portão de madeira foi aberto por ela como quem abre o coração para alguém que se identifica. Pediu que eu tirasse os sapatos para entra em sua casa, era uma espécie de terreno santo, tirei-os, mas sem medo de que ela ficasse com os meus sapatos. A sala era simples, tinha um sofá para uma pessoa somente, uma pequena mesa circular com um paninho de renda em baixo de um rádio velho, mas que funcionava - e que fez questão de me mostrar que funcionava. Quando me ofereceu algo para beber, pedi água da torneira, me trouxe em um copo de requeijão com desenhos da turma da Mônica, o que me fez lembrar minha infância e a casa de minha avó. Bebi a água e mais que depressa me apresentou o resto da casa, uma cozinha pequena com uma infiltração na parede por causa do antigo morador que havia tentado bancar o encanador e estragou a parede, mas me disse que na próxima semana um encanador de verdade concertaria a geladeira em ótimo de estado de conservação, uma mesa embutida na parede, com duas banquetas armários na direção da mesa e um fogão ao lado da pia. Mostrou-me o banheiro de azulejos amarelos e privada verde, ela riu porque sempre achou graça em seu banheiro, nunca gostou de futebol, mas me disse que sempre que entrava no banheiro pensava na seleção brasileira. Ao lado do banheiro um quarto branco com um armário daquela madeira clara, amarela, cujo nome não me recordo, sua cama de solteira arrumada com três travesseiros de fronhas coloridas. A cortina era vermelha a janela tinha vista para um prédio e se olhasse reto via o muro de sua casa. E na parede uma paisagem impressa que imitava uma pintura.

E finalmente me conduziu para seu relicário em tamanho de quarto. Antes de entrar, ela me disse que eu era a primeira pessoa em que ela mostrava seus objetos mais adorados. Tirou a corrente que envolvia a maçaneta da porta com um puxador pregado na parede, acendeu a luz e vi várias prateleiras de cheias de sapatos, coloridos, pretos, brancos, marrons, de muitas cores. Sapatos de saltos, sapatos baixos, sapatos fechados, abertos, com saltos diferentes e estilos únicos. Não tinha um par se que parecido com o outro. Todos eram únicos. Eu contemplando o templo reparei em um sofá lindo, de estampa amarela parecida com as cortinas européias do século XIV.

A luz do quarto era suave, parecia um museu, que necessitava dos mais diversos cuidados para a conservação de cada exemplar único. Ao lado do sofá atrás da porta ficava um armário, com panos, um pequeno balde e um produto de limpeza para a manutenção de seus bens mais preciosos. Pediu que eu me sentasse e admirasse a visão esplêndida que tinha todo dia às 21 horas, quando chegava da rua com um sapato roubado, ou não.

Fiquei alguns minutos admirada, me levantei e pedi que sentasse em seu lugar cativo, sua poltrona barroca. Sentei-me no chão e vi seus olhos brilharem como se fosse de uma criança em frente a uma loja de doces. Levantou-se rapidamente e pegou um par de sapatos do alto de uma prateleira e acariciando-o me contou que este havia sido seu primeiro sapato roubado. Perguntei se ela usava-os, hesitou e respondeu firme, “não jamais os usei, são meus tesouros”. Quis saber se ela guardava seus sapatos junto com os roubados, fez sinal negativo com a cabeça e disse que os sapatos dela ela sabia o significado e a importância, e os sapatos do quarto eram sagrados.
Disse-me que sabia a data e o local décor de cada roubo de sapatos. Fiquei em silêncio, esperando que ela iniciasse sua confissão. Disse-me que cada sapato fazia-a ter várias vidas, ela imaginava cada detalhe do porque determinada mulher comprou aquele sapato, ou se ganhou, em que fase da vida ela se encontrava, quanto pagou ou se dividiu em parcelas. Detalhes pequenos. Mas o que realmente importava era por onde aqueles sapatos passaram? Onde os pés daquelas donas os levaram? Será que os castigaram? Será que foram castigadas pela falta de conforto inicial que alguns sapatos provocam? Será que elas os tinham por muito tempo? Será que eram os prediletos? Será que... Será que... Será que...

Cada passo que eles foram levados a dar era imaginado com muitos detalhes e grande precisão. Fiquei mais umas horas em sua casa a escutando e presenciando uma paixão não ortodoxa, um sentimento de carinho e afeto por cada par, e pude perceber que aquela mulher tinha mais histórias pra contar do que minha bisavó. Era seu vício, sua abstração do mundo.

Coloquei-me no lugar das mulheres furtadas, ri bastante, pois nunca iriam se esquecer do roubo, seja pela maneira gentil da simples e reservada digitadora, seja pela falta que aqueles confortáveis sapatos as fazem, seja pelo inesperado objeto de roubo. Acho que depois do roubo começaram a dar valor aos sapatos - mesmo com sacolas nos pés para os protegerem, ato zeloso de nossa diferente ladra para com as vítimas.

Pés. Coisas tão importantes em nossa vida que não nos damos conta da necessidade deles, metaforicamente, sem eles não poderiam correr atrás de nossos sonhos, andar em nuvens, pular amarelinha, e entre outras coisas.

Sapatos. Tão importante para quem não os tem, coisa que as vítimas sentiram, são protetores contra o frio e das milhares poças do centro de Curitiba.


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